A “crise hídrica” na Grande São Paulo (2014-2015):
vulnerabilidade climática e déficit de governança

Marcelo Coutinho Vargas

Universidade Federal de Sao Carlos, Brasil

Recibido el 29 de septiembre de 2019; aceptado el 06 de noviembre de 2019

Resumo: Na análise da “crise hídrica” que se abateu sobre o sudeste brasileiro no biênio 2014-2015, atingindo a Grande São Paulo, podemos distinguir dois aspectos inseparáveis, mas analiticamente distintos: de um lado, o evento climático extremo, caracterizado por uma queda drástica sem precedentes na pluviosidade média da região; de outro, a crise de abastecimento de água provocada pela estiagem. Se o fato gerador foi a estiagem excepcional daquele período, a crise decorrente no abastecimento de água da metrópole configurou-se a partir de uma condição latente de vulnerabilidade e baixa resiliência que nada teve de acidental, tendo sido socialmente construída ao longo do tempo.

Palavras-chave: abastecimento de agua, extremos climáticos, vulnerabilidades, arenas decisórias.

The water crises in Greater Sao Paulo (2014-2015):
climate vulnerability and governance failures

Abstract: In the analysis of the “water crisis” that struck southeastern Brazil in the 2014-2015 biennium, reaching Greater Sao Paulo, we can distinguish two inseparable but analytically distinct aspects: on the one hand, the climate extreme, characterized by a drastic and unprecedented fall in the region’s average rainfall; on the other hand, the water supply shortage. Although triggered by that exceptional drought, the latter was determined as well by a previous condition of low resilience and high vulnerability which was not accidental, but rather socially constructed over time.

Key words: water supply, climate extremes, vulnerabilities, decision making arenas.


 

Introdução

Como grande parte do sudeste brasileiro, o estado de São Paulo enfrentou uma estiagem sem precedentes em 2014-2015, que atingiu dezenas de cidades do interior, além dos principais sistemas produtores de água potável que abastecem a região metropolitana da capital. Este artigo analisa o impacto da “crise hídrica” no maior destes sistemas, o Cantareira, que foi o mais atingido e respondia sozinho pelo abastecimento de quase metade da população da Grande São Paulo antes da crise. Partindo deste foco de análise, mostra que a crise ocorrida no abastecimento de água da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) não decorreu apenas de uma conjuntura climática adversa, sendo também resultado de decisões políticas arriscadas e pouco transparentes tanto na prevenção quanto no enfrentamento da mesma, sob condições estruturais desfavoráveis.

     A chamada “crise hídrica” abordada neste artigo, estudada pelo autor desde 2014, através da análise cruzada de dados, informações e argumentos extraídos tanto de fontes primárias (relatórios, planos e deliberações oficiais das autoridades e órgãos envolvidos na gestão do sistema Cantareira e da crise) como secundárias (artigos acadêmicos, matérias publicadas na mídia), além de algumas entrevistas, seria um caso representativo dos desafios que se impõem à governança da água nas grandes metrópoles no contexto das mudanças climáticas antropogênicas.[1]

     O artigo buscar responder três questões principais: O sistema integrado de abastecimento de água da RMSP estava preparado para enfrentar estiagens mais severas ou já apresentava sinais de vulnerabilidade antes da crise? As ações, medidas e estratégias adotadas pelo governo estadual, a operadora e os gestores do sistema Cantareira foram adequadas para o enfrentamento e a superação da crise hídrica? O sistema integrado metropolitano saiu da última crise menos vulnerável e mais resiliente para enfrentar novas adversidades relacionadas à variabilidade e às mudanças do clima?

     Além desta breve apresentação, o texto se organiza noutras quatro seções. A próxima aborda aspectos teóricos relevantes das noções de governança, vulnerabilidade e resiliência para o debate sobre a gestão sustentável da água nas bacias hidrográficas densamente urbanizadas, no qual o caso estudado se insere. A terceira seção descreve as condições gerais e escalas territoriais envolvidas no abastecimento de água da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) antes da crise hídrica. A quarta, focada no sistema Cantareira, analisa como a crise impactou o principal sistema produtor de água da RMSP e foi enfrentada pelos principais atores envolvidos na sua gestão e operação. Por fim, a seção final busca extrair da crise hídrica do biênio 2014-2015 na Grande São Paulo, algumas lições gerais sobre governança, vulnerabilidade e resiliência na gestão da água nas áreas metropolitanas face às crescentes incertezas do clima.

Gestão das águas urbanas na mudança climática: governança,
sustentabilidade e resiliência

No debate acadêmico e político atual sobre sustentabilidade e democracia na gestão da água, a noção de governança vem ocupando posição de destaque na literatura especializada.[2] Apresenta-se, a seguir, uma síntese deste debate, do qual se busca extrair elementos teórico-conceituais relevantes para a análise da crise hídrica em questão.

Governança e sustentabilidade no debate sobre modelos de gestão da água

A gestão dos recursos hídricos e do saneamento básico estruturou-se historicamente numa abordagem tecnocêntrica, baseada nas engenharias hidráulica e sanitária. Nascida com a revolução industrial, tal abordagem foi pautada numa “estratégia da oferta”, que iria predominar até meados dos anos 60 do século passado. Consistia no fornecimento de grandes volumes de água às cidades, via sistemas criados pelo Estado e a iniciativa privada, negligenciando custos e impactos socioambientais relevantes: poluição e contaminação de mananciais, destruição de ecossistemas e aumento dos conflitos entre regiões e setores usuários (Vargas, 1999).

     O desenvolvimento acelerado dos países do Norte, após a 2a. Guerra Mundial, mostrou os limites deste modelo: abastecer as cidades tornou-se dispendioso e complexo, devido à poluição e distância dos mananciais. As pressões decorrentes da crescente escassez de água nas bacias hidrográficas industrializadas se acentuaram com a gradual incorporação da proteção ao meio ambiente na agenda política mundial a partir dos anos 70, quando os problemas de gestão da água atingiram escala global, tornando-se alvo de iniciativas internacionais para conter a degradação da hidrosfera e ampliar o acesso das populações mais pobres à água potável e ao esgotamento sanitário (Castro, 2007).

     Assim, são criados diversos fóruns e conferências para debater estratégias e práticas inovadoras na gestão da água: Conferência de Dublin (1992); Conselho Mundial da Água e Global Water Partnership (1996); Fórum Mundial da Água, realizado trienalmente desde 1997; e o World Water Development Report, publicado pela onu desde 2003. Neste contexto, são debatidas e criadas as políticas de proteção e recuperação de mananciais, os colegiados de bacia hidrográfica e medidas como a cobrança pelo uso da água, visando regular conflitos e promover a utilização racional dos recursos hídricos.

     Tais diretrizes se consolidam na “gestão integrada”, que rompe com a perspectiva hidráulica de exploração extensiva dos recursos hídricos, substituindo-a pela abordagem hidrológica, que considera todo o ciclo da água em interação com o solo nas bacias hidrográficas. A despeito de apresentar desafios específicos nas bacias densamente urbanizadas, onde a captação de grandes volumes d’água para abastecimento público, a impermeabilização do solo e a poluição hídrica gerada pelas grandes aglomerações afetam cidades e regiões muito além das fronteiras das próprias metrópoles e respectivas bacias hidrográficas,[3] tal abordagem tornou-se mundialmente influente, promovendo a gestão participativa e o uso múltiplo dos recursos hídricos em diversos países, inclusive o Brasil. Contudo, embora mantenha-se predominante, a noção de gestão integrada tem sido paulatinamente preterida em favor de outras, como “gestão sustentável” e “governança” da água (Lautze, 2014).

     A noção de gestão sustentável da água permeia o discurso de ONGs e entidades profissionais do setor, sendo objeto de relatórios, conferências e disciplinas de programas de pós-graduação, tendo recebido menos atenção dos pesquisadores acadêmicos. Remete à ideia de que é preciso acrescentar às demandas humanas a demanda hídrica ambiental, numa abordagem ecológica que valoriza a preservação de espécies e ecossistemas aquáticos. Porém, não alcançou a repercussão das noções de gestão integrada ou governança da água.

     A sustentabilidade ambiental passou a fazer parte da noção atual de “gestão integrada”. Assim, o Global Water Partnership a define como “processo que promove o aproveitamento e gerenciamento coordenado da água, do solo e outros recursos, visando maximizar o bem-estar econômico e social de maneira equitativa, sem comprometer a sustentabilidade dos ecossistemas vitais” (Agarwal, 2000: 22 – tradução livre). Nesta visão, a gestão integrada da água demandaria mudanças nas relações entre instituições políticas e administrativas, agências reguladoras, sociedade civil e usuários, sob novos padrões de governança (Rogers e Hall, 2003). Quais são os pressupostos e os benefícios da última noção para a análise das políticas de saneamento e recursos hídricos?

     Embora não seja termo novo, nem haja consenso sobre seu significado, pode-se dizer que as diferentes acepções de “governança” convergem para uma visão estratégica do desenvolvimento e das políticas públicas que busca articular o Estado, empresas e o chamado terceiro setor em torno de objetivos e projetos comuns, ancorados no território. Envolveria novas formas de governar, formular e implementar políticas públicas, em que órgãos estatais compartilham responsabilidades com agentes privados para enfrentar problemas complexos e acomodar interesses conflitantes, mediante arranjos cooperativos e ações coordenadas (Kooiman, 2003).

     Aplicada aos recursos hídricos, a noção de governança teria o mérito de repolitizar a gestão da água, ao reconhecer que, em sociedades democráticas, não cabe ao governo tomar decisões unilaterais que afetem a coletividade. Porém, segundo Castro (2007), prevalece na literatura internacional uma abordagem instrumental, que concebe a governança das águas como um modelo de tomada de decisões baseado em “parcerias” entre Estado, mercado e sociedade civil, cujos agentes seriam dotados de poder equivalente e interesses convergentes. Contra tal visão “tecnocrática”, o autor propõe uma abordagem politizada, que reconhece disparidades de poder e diferenças de interesses e valores entre os agentes, ponderando que “a governança democrática das águas não envolve apenas negociação e diálogo, mas também crescente incerteza e conflitos sociais e políticos duradouros” (p. 107).

     A questão da incerteza relaciona-se aos riscos da mudança climática, cujos impactos negativos afetam a disponibilidade dos recursos hídricos e a continuidade dos serviços de saneamento das cidades, como se discute abaixo.

Impacto das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos e o saneamento

As mudanças climáticas impulsionadas pelo aquecimento global decorrente do acúmulo de gases de efeito estufa de longa duração na atmosfera terrestre, desde a revolução industrial, estão intimamente ligadas à água seja em sua dinâmica causal, seja nos seus efeitos socioambientais mais devastadores.

     No tocante às causas, o vapor d’água é isoladamente o mais poderoso dos gases de efeito estufa, contribuindo três vezes mais que o CO2 para aquecer o planeta; sua concentração, no entanto, sendo muito variável e dependente da temperatura, funciona mais como um mecanismo de retroalimentação positiva do aquecimento global (Barros de Oliveira, 2008). Por outro lado, a aceleração do ciclo da água é, sem dúvida, uma das principais consequências deste fenômeno, impactando os índices regionais de precipitação e o regime hidrológico dos rios (Lozan, 2007; WWAP, 2012). Quanto aos efeitos, a maior parte dos riscos associados às mudanças climáticas, e as principais medidas de adaptação e mitigação que reclamam, está direta ou indiretamente relacionada à água que, além de essencial à vida e às principais atividades socioeconômicas, também pode ser veículo de calamidades, destruição e transmissão doenças (Sadoff e Muller, 2009).

     Os modelos do IPCC indicam tendências de aumento das precipitações nas altas latitudes e nas áreas tropicais úmidas, ao lado da diminuição de chuvas nas áreas semiáridas e subtropicais. Também indicam aumento de áreas assoladas por secas, bem como ampliação da variabilidade sazonal e interanual das chuvas em todas as regiões. Nas últimas décadas, estariam mudando a quantidade, a distribuição e a intensidade das chuvas no espaço e no tempo. Chuvas torrenciais tornaram-se mais frequentes, mesmo em lugares onde a precipitação total diminuiu. E previsões indicam aumento na frequência e intensidade de eventos hidrometeorológicos extremos, como tempestades, secas e ondas de calor (WWAP, 2012).

     Além das mudanças nos padrões de chuva, e da elevação média do nível do mar, estima-se que aquecimento global também deverá impactar fortemente as vazões médias e a descarga anual dos rios, sobretudo os que são alimentados pelo degelo sazonal de geleiras e neves estocadas no topo das montanhas. Como assinalava o GWP, no seu primeiro Policy Brief sobre o tema, uma elevação de poucos graus na temperatura média do planeta pode provocar aumentos de 10 a 40% na vazão média dos rios nalgumas grandes bacias hidrográficas e, ao mesmo tempo, diminuição de 10 a 30% noutras (GWP, 2007: 1). Estes impactos naturalmente estão sujeitos a enormes variações regionais condicionadas por diversos fatores, como padrões de circulação atmosférica, fenômenos como o El Niño, ou mudanças no uso do solo em larga escala.

     No caso brasileiro, as projeções do IPPC, segundo Marengo (2008), indicam que a pluviosidade média da Amazônia e do Nordeste poderá cair até 20%, no final deste século, num cenário de altas emissões. Porém, os próprios climatologistas reconhecem que suas previsões de médio e longo prazo neste campo são muito mais frágeis e sujeitas a incertezas do que as relacionadas com a temperatura, dificultando estabelecer tendências de alteração no ciclo da água na escala regional (idem).

     De um modo geral, o IPCC prevê que as mudanças climáticas globais afetarão negativamente a disponibilidade de água em diversas regiões do mundo. O estresse hídrico, definido como uma disponibilidade média anual inferior a 1.700 m3 per capita, que hoje atingiria mais de 700 milhões de pessoas em 43 países, poderá afetar cerca de três bilhões de pessoas por volta de 2025, concentradas principalmente na África subsaariana, na China e na Índia (Vivekanandan e Nair, 2009).

     Por outro lado, no campo dos desastres, os eventos hidrometeorológicos extremos, como estiagens excepcionalmente severas e duradouras ou chuvas torrenciais atípicas, cuja intensidade e frequência tendem a aumentar com o aquecimento global em praticamente todos os cenários projetados, já seriam hoje globalmente responsáveis por cerca de 90% das calamidades, 72,5% das vítimas e 75% das perdas econômicas (Nunes, 2010). Para completar, prevê-se que este fenômeno resultará na expansão das zonas endêmicas de doenças de veiculação hídrica, como dengue, malária e esquistossomose (WWAP, 2012).

     Diante deste quadro, cabe refletir sobre os conceitos de vulnerabilidade, adaptação e resiliência face aos riscos decorrentes das mudanças climáticas, especialmente no campo dos recursos hídricos e do saneamento.

Vulnerabilidade, resiliência e adaptação

O próprio IPCC se encarregou de dar uma definição básica de vulnerabilidade, que corresponderia ao “grau em que um determinado sistema se encontra suscetível a ou incapaz de enfrentar os efeitos adversos da mudança climática, incluindo a variabilidade e os eventos extremos” (apud Svendsen e Kunkel, 2008: 13 – trad. livre). Essa conceituação inicial foi refinada a partir da contribuição dos cientistas sociais, de modo que a vulnerabilidade passou a ser entendida como uma condição multifacetada, social e espacialmente variável, pois implica tanto as diferenças de exposição aos riscos e desastres das pessoas e lugares, como diferenças nas respectivas capacidades de enfrentamento ou resposta, prevenção e adaptação. Assim, em situação de exposição semelhante, a vulnerabilidade dos grupos sociais desfavorecidos (pobres, idosos, crianças, etc.) seria maior, por apresentarem maior susceptibilidade aos perigos envolvidos (Marandola, 2009).

     Conforme reflexões desenvolvidas noutro trabalho sobre políticas de adaptação no campo dos recursos hídricos e do saneamento (Vargas, 2013), podemos distinguir as dimensões hidrotécnica e hidropolítica da vulnerabilidade. Assim, a primeira envolveria os riscos que se colocam para a gestão da água em seus aspectos técnicos e operacionais. No contexto urbano, a vulnerabilidade hidrotécnica corresponderia à possibilidade de um colapso nos sistemas de abastecimento público de água potável, esgotamento sanitário e drenagem pluvial, causado por eventos extremos. Decerto, cada um destes sistemas pode apresentar deficiências presentes que geram vulnerabilidade para as cidades e pessoas sem relação direta com as mudanças climáticas.

     Quanto à vulnerabilidade hidropolítica, que abarcaria a primeira, pode-se dizer que esta noção se desdobra em três dimensões analíticas: a física, a gerencial e a social. A vulnerabilidade física diz respeito, como vimos, à possibilidade de colapso na infraestrutura e nos serviços de saneamento diante de desastres relacionados a eventos extremos. A gerencial contempla o despreparo dos gestores de recursos hídricos e serviços de saneamento para lidar com incertezas que envolvem o ciclo da água no contexto das mudanças climáticas, ou sua eventual resistência a novas abordagens requeridas. Por fim, a vulnerabilidade social corresponde à falta de acesso ou à exclusão temporária de determinados grupos sociais dos serviços de saneamento básico, geralmente aqueles já desfavorecidos e mais ameaçados em termos de exposição, susceptibilidade e capacidade de recuperação do impacto das crises e desastres.

     Passemos à noção de adaptação. De acordo com a definição do IPCC, inclusa no relatório AR4 (2007), consiste no “ajustamento de sistemas naturais e humanos em resposta aos impactos atuais ou esperados da mudança climática, tendo em vista reduzir os danos e aproveitar as oportunidades envolvidas”.[4] Os processos e as políticas de adaptação abrangeriam o “conjunto das ações empreendidas para mudar comportamentos, cambiar prioridades, manter a produção de bens e serviços essenciais, bem como para planejar e agir visando reduzir os impactos nocivos da mudança climática ou mesmo transformá-los em oportunidades positivas” (ibídem.). Para estes autores, o foco estratégico das políticas de adaptação estaria no desenvolvimento da “capacidade adaptativa” das comunidades.

     Em documento publicado em 2003, a IUCN alertou para os desafios envolvidos na adaptação da gestão dos recursos hídricos e dos serviços de saneamento aos impactos esperados do aquecimento global, a começar por mudanças de perspectiva nos gestores. Os autores argumentam que a gestão dos recursos hídricos deveria orientar-se por abordagens mais amplas e flexíveis, buscando não apenas incorporar e compatibilizar as demandas de diferentes atores, a fim de superar ou reduzir conflitos nas bacias hidrográficas, como também valorizar os recursos, ecossistemas e serviços ambientais (Bergkamp; Orlando e Burton, 2003). Tais abordagens implicariam articular diferentes atores e saberes na busca de solução para problemas complexos em situação de incerteza crescente, exigindo esforços duradouros de capacitação de pessoas e instituições. Neste contexto, as prioridades seriam: a) reduzir a vulnerabilidade das pessoas aos eventos extremos; b) proteger e restaurar os ecossistemas responsáveis por serviços ambientais essenciais; e c) fazer com que a oferta de água atenda às demandas crescentes (idem).

     Passemos à noção de resiliência, normalmente associada às políticas de adaptação. Segundo Lautze (2014), as definições de resiliência, que alguns autores consideram como o oposto da vulnerabilidade, podem ser agrupadas em duas vertentes principais: a primeira, sob influência da física, se assemelha à noção de resistência e consiste na capacidade de um corpo ou sistema de absorver e suportar choques ou perturbações externas e, posteriormente, retornar ao seu estado normal; a segunda, de cunho ecológico, enfatiza a capacidade dos sistemas sociais e naturais se recuperarem dos choques e perturbações externas a partir do desenvolvimento de sua própria capacidade de regeneração e adaptação. Enquanto a primeira se focaliza na capacidade dos sistemas manterem a distribuição dos recursos e a prestação dos serviços socioambientais essenciais durante uma situação de crise, a segunda se concentra na habilidade dos atores, instituições e sistemas de aprender com a crise e de se adaptar às novas condições, ajustando-se às mudanças que ela traz. Criticando a engineering resilience que da primeira vertente, Smith (2012) sugere que, numa visão mais atualizada, a noção de resiliência seria equivalente à de adaptação ou “gestão adaptativa”.

     Podemos concluir que há duas abordagens distintas da resiliência no âmbito das estratégias de adaptação a situações de crise provocadas por extremos climáticos e outros eventos disruptivos: de um lado, uma abordagem conservadora que encara a superação da crise como retorno a uma situação anterior de equilíbrio ou normalidade; de outro, uma abordagem avançada que considera a normalidade da própria crise como uma possibilidade latente impossível de ser eliminada do horizonte, encarando a condição normal de operação do sistema como sujeita a mudanças que requerem aprendizado, precaução e adaptação.

     Considerando a última abordagem como a mais adequada para analisar as origens e as estratégias de enfrentamento da crise hídrica na RMSP durante o biênio 2014-2015, podemos adotar a seguinte definição operacional de resiliência:

capacidade geral de um sistema reduzir a própria vulnerabilidade a crises e eventos extremos ou disruptivos, ao antecipar as respectivas probabilidades de ocorrência e as consequências esperadas, bem como adotar planos e medidas para reagir às situações emergenciais em que os riscos se materializam em crise ou desastre, por meio de políticas adequadas de prevenção, enfrentamento e adaptação.

     Veremos como os conceitos examinados acima podem nos auxiliar a compreender como um fenômeno climático extremo, a estiagem do sudeste no biênio 2014-2015, se transformou numa crise do sistema de abastecimento público de água da maior metrópole da América do Sul. Antes disso, cabe-nos descrever a estrutura e as condições gerais do próprio sistema metropolitano antes da crise.

Recursos hídricos e abastecimento de água na RMSP:
condições gerais pré-crise

Com aproximadamente 21,5 milhões de habitantes, a RMSP apresenta uma condição hidrológica desfavorável. A maior parte do território desta metrópole e mais de 90% de sua população se concentram na bacia hidrográfica do Alto Tietê, cujos 5.868 km2 de área de drenagem correspondem à zona de cabeceiras deste rio, onde a vazão é naturalmente reduzida em relação à do seu curso médio. O balanço hídrico nesta bacia é bastante crítico, pois a disponibilidade natural de água é inferior a 150 m3 anuais per capita, enquanto a demanda corresponde a 2,5 vezes a vazão mínima de estiagem (FABHAT, 2017).[5] Por isso, a crise mais recente no abastecimento da Grande São Paulo vai além de uma situação conjuntural de “estresse hídrico”, refletindo uma condição estrutural: a necessidade permanente da RMSP captar grandes volumes d’água das bacias hidrográficas adjacentes.

     Quanto à qualidade das águas superficiais do Alto Tietê, o último Relatório de Situação da bacia (FABHAT, 2017) mostra que, dos 71 pontos de amostragem monitorados em 2016, somente 23 apresentaram IQA médio anual entre “ótimo” (7) e “bom” (16), número equivalente a pouco mais da metade dos pontos com IQA entre “ruim” (20) e “péssimo” (20), enquanto o restante (8) mostrou-se “regular”.[6] Embora a coleta de esgotos tenha alcançado 83% do volume gerado em 2016, a situação do tratamento permanece precária nesta bacia, atingindo 52% do volume coletado naquele ano, com remoção de apenas 43,5% da carga poluidora orgânica (ídem.). Ou seja, além de escassos e insuficientes, os recursos hídricos existentes na Grande São Paulo são subaproveitados devido à enorme poluição gerada pelos efluentes urbanos lançados nos rios da bacia do Alto Tietê.

Abastecimento de água na RMSP

Criada em 1973, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP) é uma sociedade anônima de capital aberto e economia mista, controlada pelo governo estadual. A empresa, umas das maiores do mundo em população atendida, é o principal prestador de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário na bacia do Alto Tietê, onde se situam 34 dos 39 municípios da RMSP. Destes, 29 municípios são atendidos pelo Sistema Integrado Metropolitano (SIM) da SABESP, que cuida da distribuição de água em 25 deles, vendendo água tratada aos demais, que se encarregam de operar as redes distribuidoras locais.

     Antes da crise, o SIM contava com oito Sistemas Produtores, cuja capacidade total de produção atingia cerca de 74 m3/s de água potável.[7] Todavia, como se observa na Tabela 1, a produção média do SIM caiu de 69,1 m3/s em 2013 para 62,2 m3/s em 2014, e 52m3/s em 2015, já sob o impacto da crise. Nota-se que este impacto foi bem mais acentuado no Cantareira, pois a queda na sua produção média anual durante o biênio da crise (2014-2015) foi de aproximadamente 57% em relação a 2013, contra um queda média de cerca de 25% no conjunto do sistema integrado.

 

Tabela 1

Capacidade e produção média anual das Estações de Tratamento
de Água do SIM (m3/s)

Sist.
Produtor

Capacidade (a)

2013 (b)

2014 (b)

2015(b)

2016

Cantareira

33,0

32,6

23,7

14,1

22,0

Guarapiranga

15,0

13,6

14,2

14,9

13,9

Alto Tietê

15,0

12,1

13,8

12,1

11,7

Rio Grande

5,0

3,9

4,8

3,9

3,8

Rio Claro

4,0

4,8

3,9

5,0

4,9

Alto Cotia

1,2

1,2

0,9

0,9

1,2

Baixo Cotia

0,9

0,8

0,8

0,8

0,9

Rib. Estiva

0,1

0,1

0,1

0,1

0,1

Total

74,2

69,1

62,2

52,0

58,3

 

Fontes: (a) SABESP: <http://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=36>
(b) SABESP: Relatório anual apresentado à Securities and Exchange Comission dos Estados Unidos (Formulário 20F), edições de 2014 a 2017. In:  http://www.sabesp.com.br/Calandraweb/CalandraRedirect/?temp=0&proj=investidoresnovo&pub=T&db=

O sistema Cantareira no abastecimento de água da RMSP

Para abastecer a capital e seu entorno, no início da década de 60 do século passado, o governo paulista planejou reverter grandes vazões de água da bacia do Piracicaba, por meio de uma série de barragens interligadas. Tratava-se do sistema Cantareira, cujas obras foram iniciadas em 1967 e concluídas em 1982. Com capacidade para abastecer até nove milhões de pessoas RMSP, o Cantareira teve sua participação na produção de água potável do SIM drasticamente reduzida com a crise, passando de 47% do total em 2012 para menos de 27% em 2015.

     As barragens do Cantareira também contribuem para abastecer mais de cinco milhões de habitantes das cidades situadas à jusante, nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Por isso, a dependência da RMSP deste sistema, criticado desde a sua origem, vem sendo questionada há muito pelos Comitês e o Consórcio Intermunicipal de tais bacias. Trata-se de questionamento retomado com vigor durante a seca do biênio 2014-2015 e as negociações que levaram à segunda renovação da outorga. Mas, antes de discutir como essa crise afetou o Cantareira e os diferentes atores envolvidos, cabe descrever de maneira detalhada a configuração e o funcionamento normal deste sistema.

 

 

 

Figura 1. Fluxograma do Sistema Cantareira. Fonte: Relatório de situação da UGRHI 5, 2010. Comitês PCJ, p. 7.

 

     Com área de drenagem de 2.279,5 km2, que abrange territórios de quatro municípios do estado de Minas Gerais e outros oito do estado de São Paulo, o Cantareira é um dos maiores sistemas produtores de água potável do mundo. É composto por seis barragens interligadas por 48 km de túneis e canais, além de uma estação elevatória de alta potência (v. Figura 1). Das represas Jaguari-Jacareí, a água desce por gravidade, passando pelas represas Cachoeira, Atibainha e Paiva Castro. A partir da última, já no Alto Tietê, segue por túneis até a elevatória de Santa Inês, de onde é bombeada 138 metros serra acima, descendo em seguida para a represa Águas Claras e até a Estação de Tratamento de Água do Guaraú, cuja capacidade de produção atinge 33 m3/s. O conjunto das represas Jaguari-Jacareí, Cachoeira e Atibainha funciona como um reservatório único, denominado “sistema equivalente”, cuja capacidade total de armazenamento é de 1.269,5 hm³ de água; deste montante, 982 hm³ correspondem ao chamado “volume útil”, captado por gravidade. Os 287,5 hm³ restantes constituem a reserva técnica ou “volume morto”, situado abaixo dos túneis de captação, cuja utilização requer bombeamento.[8]

     Por suas represas envolverem tanto rios de domínio União (quando drenam o território de outro país ou mais de um estado da federação), como rios de domínio estadual (que nascem e correm dentro do território do mesmo estado), o sistema Cantareira, operado pela SABESP, tem como gestores a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo (DAEE). Este complexo sistema foi construído em duas etapas. A primeira, iniciada em 1967 e concluída em 1974, envolveu barramento e captação de 11 m3/s de água dos rios Juqueri, Atibainha, Cachoeira e Jaguari. A segunda, com a construção das represas Jaguari-Jacareí, durou de 1977 a 1982, e acrescentou 22m3/s ao Cantareira, fixando a capacidade máxima do sistema em 33m3/s. Foi essa a vazão que a SABESP foi autorizada a captar nas represas deste sistema por meio de outorga concedida pela Portaria nº 750 do Ministério das Minas e Energia, em agosto de 1974, com vigência de 30 anos.

     A implantação do Sistema Cantareira foi combatida e criticada por diversos prefeitos e entidades da sociedade civil da bacia do Piracicaba, que promoveram ampla mobilização em defesa de seus rios. Destaca-se a Campanha Ano 2000, que culminou na entrega de um documento com 32 reivindicações ao governador do estado em 1987, dentre as quais a “desativação progressiva” do sistema Cantareira. Porém, as reivindicações e críticas à primeira outorga foram ignoradas pelos governos estadual e federal, já que o processo de abertura política do regime militar mal havia começado, e prevaleciam políticas setoriais desenvolvimentistas, decisões centralizadas e descaso com o meio ambiente nas áreas de recursos hídricos e saneamento. Contudo, encerrada sua vigência de 30 anos, a outorga precisou ser renovada em 2004, sob condições políticas totalmente diferentes.

     Com o país redemocratizado e dotado de uma legislação que promove a gestão integrada, descentralizada e participativa da água, a primeira renovação da outorga do Cantareira passou por um amplo processo de negociação entre a SABESP, a ANA, o DAEE e os comitês das bacias hidrográficas Alto Tietê e PCJ. Como resultado de tais negociações, a autorização para a empresa continuar captando água das bacias PCJ por meio do sistema Cantareira foi renovada por 10 anos, sob as condições estabelecidas na Portaria DAEE nº 1.213, dentre as quais se destacam: i) pagamento da água retirada pela SABESP; ii) regras de repartição da água acumulada nos reservatórios entre as bacias Alto Tietê e PCJ; iii) monitoramento hidrológico conjunto por ANA, DAEE e os referidos comitês de bacia; e iv) investimento da SABESP no aproveitamento de outros mananciais para diminuir a dependência da RMSP deste sistema.

     Nesta segunda outorga, que entrou em vigor em outubro de 2004, ficou estabelecido o patamar de 36 m3/s de água como vazão máxima de retirada total das represas do sistema equivalente, incluindo o limite de 31 m3/s captados pela SABESP para abastecer a RMSP, e a liberação de até 5 m3/s a jusante para as bacias PCJ. Este teto de 36m3/s para a vazão de retirada representa a capacidade total deste sistema que, naturalmente, sofre flutuações conforme o regime pluviométrico (que alterna períodos chuvosos e de estiagem) da bacia contribuinte. Por outro lado, também foi definido um piso de vazões primárias, destinadas ao abastecimento prioritário das residências e dos serviços essenciais de cada região (24,8 m3/s para o Alto Tietê e 3,0 m3/s para as bacias PCJ), que se buscaria garantir de maneira ininterrupta. Para evitar o esvaziamento das represas, as vazões máximas de retirada autorizadas mês a mês seriam baseadas em Curvas de Aversão ao Risco bianuais (v. Figura 2). Calculadas a partir do biênio mais seco já registrado até então na série de dados pluviométricos da bacia contribuinte ao Cantareira iniciada em 1930, os anos 1952-1953, tais curvas estabelecem vazões máximas mensais variáveis em função da quantidade de água acumulada nos reservatórios do sistema equivalente, de tal forma que, respeitados estes limites, seria mantido um armazenamento mínimo de segurança correspondente a 5% de seu volume útil nos doze meses subsequentes.

     Entretanto, outro dispositivo inserido na outorga, conhecido como “banco de águas”, contrariava as curvas de risco, permitindo contabilizar como “poupança” o volume de água não utilizado no período de chuvas por cada bacia em relação ao próprio teto (i.e.: a somatória das respectivas vazões primárias e secundárias, ponderadas as curvas de risco) para uso durante a estiagem. Assim, as vazões poupadas no período chuvoso por uma das partes eram convertidas em créditos que lhe permitiam captar vazões adicionais no período seco acima do teto e além dos limites das curvas de risco.

     De todo modo, com a seca extrema que atingiu a região no biênio 2014-2015, a mais severa desde 1930, os gestores e a operadora do Sistema Cantareira acabaram tomando decisões que colocaram em questão não apenas o referido banco de águas, mas também a própria renovação de sua outorga, como veremos a seguir.

Figura 2: Curvas de Aversão ao Risco do Sistema Equivalente, com armazenamento mínimo de 5% do volume útil, considerando as vazões naturais do biênio 1953-1954

Fonte: ANA (2004), Anexo VII, Figura 2

Vulnerabilidade e crise no sistema Cantareira

Provocada por fenômeno climático extremo, a seca do biênio 2014-2015 causou a maior queda já registrada no nível dos reservatórios do sistema Cantareira.[9] Entretanto, a crise deste sistema não teve origem somente em condições climáticas excepcionais. O colapso do Cantareira também foi produto de decisões equivocadas tomadas pelos órgãos implicados em sua gestão e operação, tanto na prevenção, como no enfrentamento da crise. Ao evitarem e postergarem medidas para reduzir a dependência da RMSP deste sistema ou conter o esvaziamento dos reservatórios, as autoridades responsáveis contribuíram para agravar a crise.

Atores e responsabilidades na prevenção da crise

No que tange à prevenção, observa-se que a SABESP não cumpriu uma das principais condicionantes da outorga de 2004. Conforme o artigo 16 da Portaria DAEE 1.213/04, caberia à empresa “providenciar, no prazo de até 30 meses, estudos e projetos que viabilizem a redução de sua dependência do Sistema Cantareira”. Para atender esta cláusula, em 2006 a Sabesp apresentou ao DAEE o Plano Diretor de Abastecimento de Água da RMSP, prevendo obras para aumentar a produção de água para a metrópole até 2025. Mas, como este plano não levava em conta as demandas de água das bacias PCJ, o DAEE considerou que aquela cláusula fora descumprida.

     Para superar o impasse, no final de 2008 o governo paulista contratou a elaboração do Plano Diretor de Aproveitamento de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista (PDMM), visando propor novos mananciais e sistemas de abastecimento para esta megalópole que abrange os maiores aglomerados urbanos do estado de São Paulo.[10] O sumário executivo deste plano, concluído cinco anos depois, trazia uma interpretação peculiar do artigo 16 da Portaria 1.213/04, cujo objetivo teria sido “buscar alívio à situação de ‘estresse hídrico’ nas bacias PCJ” e aumentar as vazões disponibilizadas para as mesmas, podendo ser alcançado por meio de “três medidas não excludentes”: i) redução da transferência das águas do Sistema Cantareira para a RMSP; ii) transferência de águas de outro manancial para o Sistema Cantareira; iii) construção de reservatórios de regularização na bacia do Piracicaba (COBRAPE, 2008: 16). Conforme o documento, “a primeira medida não é recomendada por absoluta necessidade de água para o suprimento de uma metrópole situada nas cabeceiras da bacia hidrográfica [do Alto Tietê], sendo inevitável sua dependência aos mananciais externos” (ibid.). Por conseguinte, todos os “arranjos hidráulicos” propostos no PDMM previam o Cantareira operando na capacidade máxima, com produção de 33m3/s de água até 2035.

     Assim, não surpreende constatar que a SABESP ignorou o mencionado artigo 16, que obrigava a companhia a buscar novos aproveitamentos de água para diminuir a dependência da RMSP em relação ao sistema Cantareira. O fato é que, até o início de 2014, quando o prazo de vigência da segunda outorga já estava próximo de vencer, nenhum novo sistema de produção de água havia sido implantado (desde 1992). Foi somente no início de abril, com a crise hídrica já plenamente instalada, que se iniciaram as obras do Sistema Produtor São Lourenço, concluídas quatro anos depois.

     Podemos dizer que a dependência continuada do Cantareira constituía um dos principais fatores de vulnerabilidade do sistema integrado de abastecimento de água da RMSP, como foi evidenciado durante a crise hídrica, que obrigou os gestores e a operadora do sistema a tomarem medidas relevantes para reduzí-la.

Atores e responsabilidades no enfrentamento da crise

Como apurado em Ação Civil do Ministério Público, embora não pudessem prever a gravidade da seca de 2014-2015, os gestores do Cantareira sabiam que o mesmo vinha apresentando vazões afluentes muito abaixo da média histórica desde 2012. Mas não tomaram qualquer providência para reduzir a captação de água nos reservatórios do sistema; ao contrário, mesmo com o nível das represas em queda livre no início de 2014, ANA e DAEE recorreram ao banco de águas para autorizar a SABESP a captar vazões acima dos limites das curvas de aversão ao risco examinadas acima, contribuindo para o esgotamento precoce do volume útil das represas. O dispositivo só foi suspenso em março daquele ano, quando passaram a limitar as retiradas de água do sistema “de forma insuficiente e tardia” (MPF/GAEMA, 2014: 26-32).

     Outras medidas relevantes tomadas pelos órgãos gestores do sistema Cantareira no início da crise hídrica foram: i) criação do Grupo Técnico de Assessoramento e Gestão (GTAG), com a missão de auxiliá-los no monitoramento dos reservatórios e nas decisões sobre vazões de retirada de água do sistema; ii) autorização dada à SABESP para bombear a água do volume morto, situada abaixo dos túneis de captação; e iii) suspensão da segunda renovação da outorga.

     Ao GTAG, formado por representantes da ANA, DAEE, SABESP e comitês das bacias hidrográficas PCJ e Alto Tietê, caberiam as seguintes atribuições: i) monitorar diariamente dados pluviométricos, fluviométricos e de qualidade da água dos reservatórios do sistema Cantareira, ii) expedir relatório semanal contendo, de um lado, uma avaliação dos níveis de armazenamento de água, das vazões afluentes, da demanda hídrica e das perspectivas climáticas; de outro, uma recomendação das vazões de retirada a serem praticadas na semana seguinte (tanto nas transferências para a RMSP, como nas descargas à jusante), além de possíveis medidas de restrição ou suspensão de direitos de uso da água dos usuários agrícolas e industriais situados na área de influência do sistema.

     Porém, este grupo jamais funcionou como previsto. Não elaborou relatórios semanais com recomendações de vazões de retirada para a semana seguinte; ao contrário, só publicou dez boletins com frequência quinzenal ou superior, tendo permanecido 90 dias consecutivos sem emitir qualquer comunicado. Portanto, o GTAG, não promoveu ajustes nas vazões de retirada no prazo e frequência condizentes com a própria meta de preservar reserva mínima no volume útil do sistema até o final do período seco de 2014.

     Ora, com o nível dos reservatórios em queda acelerada desde janeiro de 2014, o volume útil se esgotou no início de junho, depois da SABESP ter iniciado a captação de uma parcela do volume morto em meados de maio, com autorização dos gestores, acrescentando 182,5 bilhões de litros de água ao volume armazenado no sistema. Cinco meses depois, com o iminente esgotamento desta parcela e após vencer uma batalha judicial contra esta medida, a companhia foi autorizada a explorar outra parcela desta reserva, que acrescentou 105 bilhões de litros de água ao sistema.

     Ainda em julho de 2014, a resolução conjunta ANA/DAEE nº 910 prorrogou a outorga do Cantareira, que estava prestes a expirar, adiando as negociações para sua renovação. Na mesma resolução, os gestores suspenderam disposivos da outorga relativos à governança compartilhada da água do sistema equivalente e esvaziaram as atribuições do GTAG, que foi prematuramente dissolvido em setembro, no auge da crise.

     Cabe examinar mais de perto as medidas adotadas pela SABESP para enfrentar a crise hídrica, para além do Cantareira, cujas vazões de retirada passaram a ser drasticamente reduzidas pelos gestores a partir de meados de 2014 até o final de 2015. Como operadora do Cantareira e do SIM, a companhia se viu obrigada a fazer obras e adotar medidas emergenciais tanto para reduzir a demanda, como para ampliar e otimizar a oferta de água no curto prazo. Como se discute a seguir, ao analisar o timing e a escolha destas medidas, percebe-se a influência dos interesses eleitorais do governador nas decisões da empresa.

     Em relatório apresentado à Agência Reguladora de Energia e Saneamento do estado de São Paulo (ARSESP) em janeiro de 2014, a SABESP cogitou adotar um programa de racionamento de água na RMSP para “reduzir a produção do Sistema Cantareira e evitar o colapso de seus mananciais” (MPF/GAEMA: 45). Mas, com o governador concorrendo à reeleição no final do ano, tal medida acabou sendo descartada em favor de outras sem ônus político. Assim, já em fevereiro, a SABESP lança um “programa de bônus” para incentivar a economia de água, com descontos de até 30% na conta dos usuários cujo consumo fosse reduzido em pelo menos 20% em relação à média do ano anterior. Cogitada naquele momento, a aplicação de uma sobretaxa ao consumo excedente só viria a ser adotada um ano depois, com o governador reeleito.

     Em paralelo, a empresa reduz a pressão na rede distribuidora, planeja e executa obras emergenciais para viabilizar o remanejamento de água entre os sistemas produtores. Tais obras permitiram transferir, ao longo de 2014,
6,3 m3/s de outros sistemas para áreas anteriormente atendidas pelo Cantareira (SABESP, 2015:17). Já a redução noturna na pressão hidráulica, que deixava diariamente milhões de pessoas sem água na RMSP,[11] foi a medida mais eficiente para reduzir a demanda sobre o Cantareira durante a crise: da queda de 17,7m3/s observada na produção deste sistema, entre fevereiro de 2014 e março de 2015, 41% provieram da redução de pressão, contra 36% da transferência de água de outros sistemas, 20% do programa de bônus e 3% de diminuição na venda de água tratada aos municípios distribuidores (ídem., p. 24).

     Mesmo sendo tecnicamente eficiente na contenção da demanda e no controle de vazamentos e desperdícios, sem trazer os riscos de rompimento de tubulações derivados do racionamento de água mediante cortes no fornecimento, a redução da pressão hidráulica na rede foi criticada como uma medida com impacto desigual nos consumidores. Pesquisas mostraram que as famílias mais pobres foram as mais prejudicadas, por morarem nas áreas mais altas e afastadas dos centros de distribuição do SIM, onde chegou a faltar água nas torneiras por horas a fio, durante o dia, no pico da crise (cf. Dias et al., 2015). Quanto às medidas tomadas para otimizar e ampliar a oferta, a SABESP não ficou apenas no aproveitamento do volume morto do Cantareira. A companhia iniciou e concluiu mais quatro obras e intervenções emergenciais relevantes para combater a escassez de água durante o biênio da crise hídrica, as quais acrescentaram 7,5m3/s à produção de água potável do SIM (v. Tabela 2). Entretanto, com exceção do aumento de 2,0m3/s na produção do sistema Guarapiranga, as vazões adicionais decorrentes de obras e intervenções no sistema Alto Tietê não constituem uma ampliação da oferta corrente de água no SIM, mas antes capacidades de reforço que dão mais segurança aos sistemas para serem acionadas noutras estiagens extremas.

 

 

Tabela 2

Principais obras da SABESP para ampliar a oferta
de água à RMSP durante a crise

Obras Emergenciais (2014-2015)

 

Sist. Produtor

Início

Capacidade (m3/s)

Situação

Reversão do rio Guaratuba ao reservatório Ponte Nova

Alto Tietê

Nov./
2014

0,5

Concluída

(Janeiro/2015)

Bombeamento de água do rio Guaió p/ reserv. Taiaçupeba

Alto Tietê

Fev./
2015

1,0

Concluída
(Junho/2015)

Transferência Rio Grande (Billings) Taiaçupeba

Alto Tietê

Maio/
2015

4,0

Concluída

(Setembro/
2015)

Ampliação da ETA Alto da Boa Vista

Guara-
piranga

2014

2,0

Concluída

(Dezembro/
2015)

Obras Estruturantes (2014-2017/18)

Sist. Produtor São
Lourenço

São
Lourenço

Abril/
2014

4,7

Concluída

(Abril/2018)

Interligação Jaguari-
Atibainha

Cantareira

Fev./
2016

5,13

Concluída

(Março/2018)

Reversão do rio Itapanhaú à represa de Biritiba

Alto Tietê

Jan/
2018

2,0

Junho/2020

(previsão)

 

Fonte: Relatório de Sustentabilidade da SABESP (anual), edições de 2014 a 2017.[12]

 

     Com exceção do sistema produtor São Lourenço, que traz uma expansão média de 4,7m3/s na produção de água do SIM, a mesma lógica se aplica às obras estruturantes inauguradas após a crise (cf. tabela acima). A interligação Jaguari-Atibainha, que permite ao sistema Cantareira captar 5m3/s de água na bacia hidrográfica do Paraíba do Sul, também foi concebida como um dispositivo de reforço deste sistema. Ao impactar a disponibilidade de água nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, também banhados pelo Paraíba, esta obra, prevista no PDMM, enfrentou forte resistência dos respectivos governos. O conflito foi superado por um acordo entre os governadores, mediado pelo Supremo Tribunal Federal, do qual resultou uma interligação de mão dupla, que também permite ao Cantareira socorrer a bacia do Paraíba, transferindo até 3m3/s na direção inversa.

     A despeito das obras e medidas emergenciais já adotadas, a crise hídrica se agrava ao entrar no segundo ano do biênio crítico: em 2015 ocorreram o janeiro mais seco e as menores vazões afluentes jamais registradas na bacia contribuinte do Cantareira desde 1930, quebrando os recordes do ano anterior. Apesar das chuvas de verão terem voltado em fevereiro, o Cantareira chegou ao fim do período seco, com menos água nos reservatórios do que tinha um ano antes: o volume de água armazenado no sistema correspondia a apenas 15% de sua capacidade (incluindo reserva técnica), contra 25% em 31 de maio de 2014.[13] Mesmo tendo chovido mais, o uso intensivo do volume morto cobrou seu preço, pois o solo ressecado dificultou o armazenamento de água nas represas, conforme o chamado “efeito esponja” comentado na mídia à época.

     Daí em diante, as restrições de captação impostas pelos gestores, somadas às medidas promovidas pela SABESP, reduziram a menos da metade a produção média do Cantareira, favorecendo a lenta recuperação dos reservatórios (SABESP, 2015). Mesmo assim, somente no último dia de 2015 o sistema conseguiu “sair do vermelho”, quando atingiu 0,3% do volume útil, depois de passar 19 meses operando no volume morto. A recuperação do Cantareira prosseguiu desde então, com o regime de chuvas tendo voltado grosso modo aos padrões médios de longo prazo na região. Foi assim que, no final de março de 2016, quando o Cantareira atingiu 36% de seu volume útil, o governador anunciou o fim da crise hídrica, embora a regularidade no abastecimento de água ainda deixasse a desejar nas regiões periféricas da metrópole. Na cobrança de tarifas, a normalidade só voltou em maio, quando o programa de bônus (que beneficiava os clientes cujo consumo de água foi reduzido durante a crise) e a sobretaxa (que penalizava aqueles cujo consumo aumentara) foram ambos revogados pela agência reguladora por solicitação da própria SABESP.

     Como vimos, na questão da prevenção contra a crise hídrica (que não se confunde com uma incerta previsão do extremo climático), podemos responsabilizar a operadora e os gestores do sistema Cantareira por decisões imprevidentes (sempre avalizadas pelo governo estadual) as quais o mantiveram, juntamente com todo o SIM, numa condição de vulnerabilidade, a saber: de um lado, o descumprimento da cláusula 16 da 2ª outorga, mantendo o abastecimento de água da RMSP altamente dependente do Cantareira; de outro, a superexploração dos mananciais deste sistema relacionada ao abuso do chamado banco de águas em detrimento das curvas de aversão ao risco na determinação das vazões de retirada dos reservatórios. O que dizer das decisões tomadas pelo governo estadual e estes mesmos órgãos na gestão da crise? Foram tomadas as medidas mais adequadas para enfrentá-la e mitigar seus efeitos perversos sobre a população?

     É possível dizer que o governo estadual, os gestores e a operadora do Cantareira saíram-se melhor na gestão do que na prevenção da crise hídrica. Podemos dizer que as principais medidas tomadas para enfrentá-la, seja no aumento da oferta, seja na redução do consumo, foram tecnicamente adequadas e eficazes. Foram acertadas as decisões dos gestores de autorizar a captação de água no volume morto das represas, reduzir as vazões de retirada e adiar a renovação da outorga do sistema Cantareira; e também o foram, da parte da SABESP, a execução de obras emergenciais para viabilizar a transferência de vazões de água bruta e de água tratada entre os sistemas produtores, permitindo aliviar o Cantareira, assim como a decisão de reduzir diariamente a pressão na rede hidráulica no período noturno como alternativa aos cortes no fornecimento de água.

     Mesmo assim, é possível criticar politicamente o timing e a maneira como tais medidas foram decididas e aplicadas, como o fizeram o Ministério Público, a imprensa e diversas organizações da sociedade civil ao longo da crise. O MP foi o primeiro a criticar ANA e DAEE pelo abuso do banco de águas e a demora em reduzir as vazões de retirada do sistema Cantareira; e tanto a imprensa como as ONGs denunciaram a resistência do governador a chancelar medidas impopulares, como a sobretaxa ao consumo excedente, durante o ano eleitoral de 2014.

     Mas as críticas das ONGs à atuação do governo estadual no enfrentamento da crise foram bem mais amplas e radicais. Tendo demorado a entrar em cena, o “terceiro setor” o fez de maneira articulada, ao lançar a “Aliança pela água” em outubro de 2014: uma grande coalização de entidades da sociedade civil que interveio no debate sobre a crise da água em São Paulo, com questionamentos e propostas para superá-la. Fruto desta iniciativa, o relatório Crise Hídrica e Direitos Humanos (Martins et al., 2015), encaminhado à onu um ano depois, acusou o governo estadual de violação do direito humano à água e ao saneamento. De acordo com as entidades signatárias, os indícios desta violação estariam presentes tanto nas origens da crise, quanto nos processos de decisão e no impacto das medidas adotadas para enfrentá-la. Para elas, a gravidade da crise deveu-se à “falta de planejamento”, i.e.: ausência de medidas de precaução visando à “prevenção e defesa contra eventos hidrológicos extremos”; falta de “planos de contigência” face ao possível agravamento da escassez hídrica; falta de proteção e superexploração dos mananciais.

     Com relação aos processo de decisão das medidas e obras emergenciais contra a crise, o referido relatório denuncia as autoridades estaduais por falta de transparência e descumprimento da legislação. Ao mostrar que boa parte das obras foram aprovadas e licenciadas em caráter emergencial, os autores alegam que a situação de emergência teria sido utilizada para justificar regimes especiais de contratação e ritos administrativos sumários, mas “não para estabelecer com clareza, equidade e transparência as medidas adotadas para manter a prestação dos serviços” (Martins, 2015: 7). Estudos da Ong Artigo 19 Brasil também mostraram que a escassez de água durante a crise foi acompanhada da escassez de informações adequadas sobre sua gravidade e as medidas em andamento para superá-la, devido ao descompromisso das autoridades com o direito à informação e a prestação de contas ao cidadão (Dias, 2016).

     Quanto ao impacto das medidas, o relatório encaminhado à onu argumentam que a SABESP teria violado o direito à água das populações mais pobres ao promover interrupções “arbitrárias”, “repentinas”, “sem planejamento e comunicação prévia” no fornecimento de água às regiões periféricas da RMSP mediante reduções na pressão hidráulica, descumprindo dispositivos legais que obrigam os responsáveis pelo abastecimento público de água a comunicarem previamente à vigilância sanitária, ao regulador e aos usuários qualquer interrupção no serviço, com a identificação do período e dos bairros afetados.[14] Contudo, só depois da deliberação nº 545 da ARSESP ter sido publicada, em janeiro de 2015, essa informação passou a ser diariamente divulgada pela companhia (Martins, 2015: 10).

     Ora, a acusação da Aliança pela água e seus parceiros de que o governo estadual teria violado o direito humano à agua durante a crise hídrica parece exagerada. Afinal, a situação impunha celeridade no licenciamento das obras emergenciais, todas elas liberadas pelo poder Judiciário depois de terem sido embargadas pelo Ministério Público. Não se pode tampouco dizer que às interrupções no serviço decorrentes de reduções na pressão hidráulica foram “repentinas e sem planejamento”, já que há décadas a SABESP investe na setorização e no controle de pressões na rede, instalando sistematicamente válvulas redutoras de pressão, muitas delas acionadas por telecomando, em diferentes setores do SIM. É verdade que, durante a crise, a empresa reduziu a pressão hidráulica mínima abaixo da norma técnica padrão no período noturno, gerando interrupções duradouras no fornecimento de água aos moradores pobres das áreas altas situadas nas extremidades das redes. Entrentanto, a empresa alega que a pressão mínima praticada baseava-se em dispositivos específicos da própria norma e era suficiente para preencher os reservatórios prediais, tendo promovido a distribuição gratuita de caixas d’água para as famílias mais pobres. Mesmo que a última iniciativa tenha ficado aquém das necessidades de tais famílias, como noticiado na época, as desigualdades sociais na distribuição de água durante a crise hídrica teriam sido ainda mais graves se a SABESP e o governo estadual tivessem optado pelo racionamento.

Considerações finais

Respondendo à primeira das três questões formuladas no início deste artigo, constatou-se que o SIM apresentava uma condição de vulnerabilidade que, em grande parte, decorria da própria dependência do Cantareira. Tal condição não dizia respeito apenas à dependência dos mananciais de água deste sistema e do seu estado de conservação, mas também comportava aspectos técnicos (como a precária interconexão e flexibilidade operacional entre o conjunto dos sistemas produtores) e aspectos político-institucionais relacionados à segunda outorga (o descumprimento do artigo 16, e a possibilidade dos créditos acumulados no banco de águas prevalecerem sobre às curvas de aversão ao risco nas decisões sobre as vazões de retirada do sistema). Portanto, no tocante à prevenção e defesa contra extremos climáticos, podemos concluir que vulnerabilidades hidrotécnicas e hidropolíticas conferiam ao SIM uma condição de baixa resiliência pré-crise.

     Na segunda questão concernente à eficácia das medidas adotadas para mitigar e superar a crise hídrica, verificou-se que as mesmas foram tecnicamente eficazes, tanto para reduzir a demanda, como para aumentar a oferta de água durante o biênio da estiagem. Todavia, os processos de decisão envolvidos parecem ter sido mal conduzidos politicamente, ao menos na arena pública.

     Contrariando princípios de gestão compartilhada, descentralizada e participativa da água previstos na legislação brasileira, as medidas foram tomadas em arenas decisórias restritas, além de mal comunicadas e informadas à opinião pública. Por isso, foram alvo de inúmeras ações judiciais, bem como de discursos oportunistas mobilizados tanto pela oposição, como pelo governo, nas disputas político-partidárias e eleitorais do período. A politização e judicialização destas medidas refletem certo “déficit de governança” em seu processo decisório, cuja origem não estaria tanto no suposto descompromisso do governo estadual do momento com os princípios de transparência e accountability da administração pública, conforme a crítica das ONGs. Nossa análise da crise hídrica na RMSP sugere outra hipótese explicativa, asegundo a qual, no enfrentamento de crises de qualquer natureza, qualquer governo tende a promover tanto o estreitamento dos espaços de governança, como o deslocamento e o fechamento das arenas decisórias das políticas públicas mais afetadas. Resistir a essa tendência passa a ser um enorme desafio, na medida que as incertezas do clima em mutação parecem transformar a crise, sua prevenção e enfrentamento, em aspecto normal da governança da água.

     Sobre o legado da crise hídrica, objeto da última questão, pode-se dizer que as obras de interconexão e reforço dos sistemas produtores de água potável realizadas no seu enfrentamento aumentaram a flexibilidade operacional e a resiliência do SIM. Junto com o novo sistema São Lourenço, tais obras permitiram reduzir a dependência da RMSP do sistema Cantareira, atacando um foco central de vulnerabilidade técnica do SIM. Por outro lado, ao permitirem uma repartição mais justa e equilibrada das águas do sistema Cantareira entre as bacias Alto Tietê e PCJ, diminuindo os conflitos entre ambas, as regras operacionais da 3ª outorga teriam reduzido a vulnerabilidade hidropolítica deste sistema. Porém, a indefinição nas regras operacionais da transposição das águas do Paraíba do Sul ao Cantareira, que já está em operação, parece caminhar na direção contrária: salvo se o nível dos reservatórios deste sistema estiver abaixo de 20% do volume útil global, a SABESP pode acionar discricionariamente essa transposição sem que precise prestar contas à sociedade ou aos gestores do sistema (ANA/DAEE, 2017).

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FABAHT - Fundação agência da bacia hidrográfica do Alto Tietê

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[1] Meus estudos foram beneficiados por um estágio de pós-doutoramento junto ao Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas, entre meados de julho de 2018 e fevereiro do corrente, onde desenvolvi o projeto de pesquisa “Mudança climática e hidropolítica na Macrometrópole Paulista: uma análise das dimensões político-institucionais e espaço-temporais da "crise hídrica" (2014-2015) a partir do Sistema Cantareira”, sob a supervisão do prof. Dr. Roberto Luiz do Carmo.

[2] Cf. OECD (2015), Lautze (2014), Valk e Keenan (2011), Rogers e Hall (2003), i.a.

[3] Para as especificidades da “gestão integrada das águas urbanas”, cf. Bahri (2012) e Tucci (2008).

[4] Apud Svendsen e Kunkel (2008: 13), em tradução livre.

[5] Para a onu, uma região com disponibilidade de água anual inferior a 1000 m3 per capita já se encontra numa condição de escassez hídrica. De acordo com este indicador, a situação da RMSP seria análoga às condições das regiões semi-áridas.

[6] IQA: Índice de Qualidade da Água calculado pela companhia ambiental do estado de São Paulo (CETESB) a partir da análise de amostras coletadas na sua rede de monitoramento.

[7] Exclui o sistema São Lourenço, que teve sua construção iniciada durante a crise, sendo inaugurado em abril de 2018, cuja capacidade regularizada de produção de água potável atinge 4,7m3/s. Os dados de produção média deste sistema ainda não estão disponíveis.

[8] Dados extraídos do “infográfico Cantareira”, disponível in: <http://mananciais.
sabesp.com.br/Home
>.

[9] Segundo a ANA (2015), a forte queda na pluviosidade da região sudeste em 2014 caracterizou-se como um fenômeno climático extremo, com probabilidade de ocorrência inferior a 1% e tempo de retorno superior a 100 anos. Naquele ano, a vazão média anual afluente aos reservatórios do Cantareira atingiu apenas 8,7 m3/s, menor valor já registrado em 84 anos, correspondendo a 22% da média histórica do período e apenas 40% da vazão média de 1953, o ano mais seco da série.

[10] Trata-se de macrorregião de 52 mil km2, com cerca de 31 milhões de habitantes, distribuídos em 180 municípios, cujo perímetro abrange oito bacias hidrográficas e quatro regiões metropolitanas do estado de São Paulo (COBRAPE, 2013).

[11] Pesquisa do Datafolha constatou que, somente na capital, cerca de nove milhões de pessoas ficaram sem água no auge da crise. Cf. matéria “Maioria diz que Alckmin omite dados de estiagem”, publicada na Folha de S. Paulo, em 16 de agosto de 2014.

[12] Todas as edições do relatório, desde 2007, estão disponíveis no website da SABESP, in <http://www.sabesp.com.br/CalandraWeb/CalandraRedirect/?temp=4&proj=investidoresnovo&pub=T&db=&docid=1D4769482AB57353832574F7005D9F27&docidPai=AB82F8DBCD12AE488325768C0052105E&pai=filho5>. Acesso: junho a dezembro de 2018.

[13] Dados disponíveis em http://mananciais.sabesp.com.br/Home (selecionar a data). O regime hidrológico padrão na bacia do sistema Cantareira alterna um período seco (junho a novembro) e um período úmido (dezembro a maio).

[14] Cf. Portaria 2914/2011 do Ministério da Saúde (art. 126) e Lei Federal 11.445/2007 (art. 40, §1º).